sábado, 31 de dezembro de 2016

Salmo 62: Sede de Deus
Vigia diante de Deus, quem rejeita as obras das trevas (cf. 1Ts 5,5)

— 3Venho, assim, contemplar-vos no templo,*
para ver vossa glória e poder.


Deus quer o ser humano junto de si e o chama para o seu serviço, não por utilidade, mas por amor. E a resposta adequada do homem a revelação desta sua bem-aventurança é a fé: “venho”. A Escritura expõe os termos desta resposta: “Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6, 4-5). “Sacrifício e oblação não quisestes, mas abristes, Senhor, meus ouvidos; não pedistes ofertas nem vítimas, holocaustos por nossos pecados. E então eu vos disse: 'Eis que venho!' Sobre mim está escrito no livro: 'Com prazer faço a vossa vontade, guardo em meu coração vossa lei!'” (Sl 39, 7-9). A Deus só se pode ir com intenção de dar-se por inteiro.

A casa do Senhor, o seu Templo, lugar do encontro preparado com tanto esmero, destruído e reconstruído, é símbolo do amor de Deus pela alma fiel, verdadeiro lugar do encontro entre o céu e a terra. “Contemplar-vos no Templo”, expressão do Salmo, é o encontro de duas promessas: a promessa do homem que sobe a montanha sagrada e a promessa divina de ali se manifestar. Não há uma fórmula exata para este encontro e o mesmo desejo de buscá-lo já revela o toque suave d’Aquele que move no coração tanto o querer como o agir (Cfr. Fl 2, 13). O homem realiza-se na entrega confiada a Deus, nos termos que Ele mesmo lhe revelou. Assim, "acreditar" já é estar a caminho para a plena contemplação. A vida se esvai inexoravelmente, mas o homem pode escolher onde e com que propósito ela se gastará.

“Para ver vossa glória e poder”. A promessa da visão de Deus não pode ser cumprida plenamente nesta existência terrena. O orante bem o sabe e anseia pelo cumprimento definitivo da passagem da figura deste mundo. Também sabe que nesta terra habita a confusão e a distorção da realidade que almeja, ainda que Deus não lhe negue para sempre os lampejos de sua glória e poder. Quem crê possui uma via de conhecimento privilegiada para a verdade.

“A fé faz que saboreemos, como que de antemão, a alegria e a luz da visão beatifica, termo da nossa caminhada nesta Terra. Então veremos Deus «face a face» (1 Cor 13, 12), «tal como Ele é» (1 Jo 3, 2). A fé, portanto, é já o princípio da vida eterna: «Enquanto, desde já, contemplamos os benefícios da fé, como reflexo num espelho, é como se possuíssemos já as maravilhas que a nossa fé nos garante havermos de gozar um dia» (São Basílio Magno).

Por enquanto porém, «caminhamos pela fé e não vemos claramente» (2 Cor 5, 7), e conhecemos Deus «como num espelho, de maneira confusa, [...] imperfeita» (1 Cor, 13, 12). Luminosa por parte d'Aquele em quem ela crê, a fé é muitas vezes vivida na obscuridade, e pode ser posta à prova. O mundo em que vivemos parece muitas vezes bem afastado daquilo que a ,fé nos diz: as experiências do mal e do sofrimento, das injustiças e da morte parecem contradizer a Boa-Nova, podem abalar a fé e tornarem-se, em relação a ela, uma tentação.

É então que nos devemos voltar para as testemunhas da fé: Abraão, que acreditou, «esperando contra toda a esperança» (Rm 4, 18); a Virgem Maria que, na «peregrinação da fé» (LG 58), foi até à «noite da fé» (Redemptoris Mater, 17), comungando no sofrimento do seu Filho e na noite do seu sepulcro (Idem, 18); e tantas outras testemunhas da fé: «envoltos em tamanha nuvem de testemunhas, devemos desembaraçar-nos de todo o fardo e do pecado que nos cerca, e correr com constância o risco que nos é proposto, fixando os olhos no guia da nossa fé, o qual a leva à perfeição» (Heb 12, 1-2)”. (Catecismo da Igreja Católica, 163-165)

“Porventura o céu e a terra te contêm, porque os enches? Ou será melhor dizer que os enches, mas que ainda resta alguma parte de ti, já que eles não te podem conter? E onde estenderás isso que sobra de ti, depois de cheios o céu e a terra? Mas será necessário que sejas contido em algum lugar, tu que conténs todas as coisas, visto que as que enches as ocupas contendo-as? Porque não são os vasos cheios de ti que te tornam estável, já que, quando se quebrarem, tu não te derramarás; e quando te derramas sobre nós, isso não o fazes porque cais, mas porque nos levantas, nem porque te dispersas, mas porque nos recolhes.

No entanto, todas as coisas que enches, enche-as todas com todo o teu ser; ou talvez, por não te poderem conter totalmente todas as coisas, contêm apenas parte de ti? E essa parte de ti as contêm todas ao mesmo tempo, ou cada uma a sua, as maiores a maior parte, e as menores a menor parte? Mas haverá em ti partes maiores e partes menores? Acaso não estás todo em todas as partes, sem que haja coisa alguma que te contenha totalmente?”. (Santo Agostinho, Confissões I, 3)


“Não seja vã, ó minha alma, nem ensurdeças o ouvido do coração com o tumulto de tua vaidade. Ouve também : o próprio Verbo clama que voltes, porque só acharás repouso imperturbável lá onde o amor não é abandonado, se ele não nos abandona antes. Eis que as coisas passam para ceder lugar as outras, e para que assim se forme este universo inferior, de todas as suas partes. “Mas, por acaso, afasto-me de um lugar para outro?” – diz o Verbo de Deus – Fixa nele tua morada, confia a ele tudo o que dele recebeste, alma minha, já cansada de tantos enganos. Confia à Verdade quanto da Verdade recebeste, e nada perderás; antes, tua podridão reflorescerá e serão curadas todas as tuas fraquezas, e serão retomadas e renovadas, estreitamente unidas a ti, tuas partes inconscientes; e já não te arrastarão para a ladeira por onde descem, mas permanecerão contigo para sempre onde está Deus, eterno e imutável”. (Santo Agostinho, Confissões IV, 11)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Salmo 62: Sede de Deus
Vigia diante de Deus, quem rejeita as obras das trevas (cf. 1Ts 5,5)

= 2b A minh'alma tem sede de vós,+
minha carne também vos deseja,*
como terra sedenta e sem água!


“A minh’alma”: é esta realidade que está diante de meu Deus. Pequena, mas alvo do amor divino. Ela mesma não é capaz de compreender o incompreensível, mas foi criada para estar ante a Majestade de Amor. Ignorante de si mesma e ignorante de seu Senhor, ela foi criada para arder de amor e nisto encontra sua bem-aventurança. “Exulte o coração dos que buscam o Senhor” (Sl 105, 3). Ai de minha alma se se esquece ou se esquiva da verdade!

Entretanto esta alma quer e pode crescer em conhecimento, de si e de Deus, do mundo e do seu semelhante; e a verdade que mais a atrai, vencidas as barreiras das aparências, é Deus. Ela “tem sede de vós”. Esta sede de eternidade e de verdade dá sentido à vida do homem, um ser finito em suas potências, mas feito de aspirações pelo infinito.

Não só o espírito do homem procura um sentido, mas também sua carne, receptáculo e expressão de sua maravilhosa interioridade. Todo homem deve confessar: “minha carne também vos deseja”. Pois esta esplêndida criatura de Deus, o corpo humano, assumido pela divindade na Encarnação do Filho, foi criado para ver o Amor. A carne também é capaz de manifestá-lo e expressá-lo a tal ponto que foi querida por Deus Onipotente na plenitude de sua Revelação. Ela não é carcereira do espírito, mas sua intérprete mais fiel, e também anseia a beleza divina, como o manifesta, entusiasta, o justo Jó: “Eu sei que meu redentor está vivo e que no fim se levantará acima do pó. Mesmo com a pele em pedaços e em carne viva, eu verei a Deus. Eu mesmo o verei, e não outro; eu o verei com os meus próprios olhos. Minhas entranhas queimam dentro de mim”. (Jó 19, 25-27)

Sua sede impressionante clama pela misericórdia na confissão de sua impotência: “como terra sedenta e sem água”. As rachaduras da terra árida, como gargantas abertas, são um testemunho de sua pobreza ante o Céu "plenipresente" que pode deixar cair a água, única capaz de fechar suas fauces. Assim é o homem ante o mistério: sedento e esperançoso.

“E como invocarei meu Deus, meu Deus e meu Senhor, se ao invocá-lo o faria certamente dentro de mim? E que lugar há em mim para receber o meu Deus, por onde Deus desça a mim, o Deus que fez o céu e a terra? Senhor, haverá em mim algum espaço que te possa conter? Acaso te contêm o céu e a terra, que tu criaste, e dentro dos quais também criaste a mim? Será, talvez, pelo fato de nada do que existe sem Ti, que todas as coisas te contêm? E, assim, se existo, que motivo pode haver para Te pedir que venhas a mim, já que não existiria se em mim não habitásseis?

Ainda não estive no inferno, mas também ali estás presente, pois, se descer ao inferno, ali estarás.

Eu nada seria, meu Deus, nada seria em absoluto se não estivesses em mim; talvez seria melhor dizer que eu não existiria de modo algum se não estivesse em ti, de quem, por quem e em quem existem todas as coisas? Assim é, Senhor, assim é. Como, pois, posso chamar-te se já estou em ti, ou de onde hás de vir a mim, ou a que parte do céu ou da terra me hei de recolher, para que ali venha a mim o meu Deus, ele que disse: Eu encho o céu e a terra?”. (Santo Agostinho, Confissões I, 2)

“De muitos modos, na sua história e até hoje, os homens exprimiram a sua busca de Deus em crenças e comportamentos religiosos (orações, sacrifícios, cultos, meditações, etc.). Apesar das ambiguidades de que podem enfermar, estas formas de expressão são tão universais que bem podemos chamar ao homem um ser religioso:

Deus «criou de um só homem todo o género humano, para habitar sobre a superfície da terra, e fixou períodos determinados e os limites da sua habitação, para que os homens procurassem a Deus e se esforçassem realmente por O atingir e encontrar. Na verdade, Ele não está longe de cada um de nós. É n'Ele que vivemos, nos movemos e existimos» (At 17, 26-28).

Mas esta «relação íntima e vital que une o homem a Deus» (GS, 19) pode ser esquecida, desconhecida e até explicitamente rejeitada pelo homem. Tais atitudes podem ter origens diversas (Cfr. GS 19-21) a revolta contra o mal existente no mundo, a ignorância ou a indiferença religiosas, as preocupações do mundo e das riquezas (Cfr. Mt 13, 22), o mau exemplo dos crentes, as correntes de pensamento hostis à religião e, finalmente, a atitude do homem pecador que, por medo, se esconde de Deus (Cfr. Gn 3, 8-10) e foge quando Ele o chama (Cfr. Jo 1, 3)”. (Catecismo da Igreja Católica, 28-29)

“O bem é objeto da fé enquanto verdadeiro e objeto da esperança enquanto desejável e acessível, mas ambos dependem da caridade que tem o bem como objeto enquanto apetecível. Ninguém crê, a não ser querendo. Ninguém deseja um bem a não ser porque o ama. (...)

O intelecto é absolutamente anterior à vontade, porque o bem inteligido é objeto da vontade. Mas, no operar e no mover, a vontade é anterior. (...) Por isso, também a vontade move o próprio intelecto, enquanto é operativo, pois, nos valemos do intelecto quando queremos. Daí que o crer é o intelecto movido pela vontade (pois cremos em algo porque queremos). Segue-se que a caridade dá mais forma a fé do que o inverso. (...)

Quando as coisas são mais elevadas do que o que entende, então a vontade se eleva mais acima de onde pode chegar o entendimento. E, por isso, nas coisas morais, que estão abaixo do homem, a virtude cognitiva informa as virtudes apetitivas, como o faz a prudência em relação às outras virtudes morais. Contudo, nas virtudes teologais, que são a cerca de Deus, virtude da vontade, a saber, a caridade, informa a virtude do intelecto, a saber, a fé”. (Santo Tomás de Aquino, Questões disputadas sobre as virtudes, q. 2, a. 3)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Salmo 62: Sede de Deus
Vigia diante de Deus, quem rejeita as obras das trevas (cf. 1Ts 5,5)

— 2Sois vós, ó Senhor, o meu Deus!*
Desde a aurora ansioso vos busco!


No início de meu dia, Senhor, o encontro. Como fiel sentinela de minha alma, Ele está a postos e me incita a levantar. Busco o Senhor porque me buscou primeiro. Brota, então, de meu coração uma certeza maior e mais densa do que minha própria vida: “Sois Vós”!

Não consigo expressar palavra que desafogue o que sinto ao perceber Sua presença. O Senhor inunda, sustenta, refulge, abrasa. Persiste, entretanto, minha pequenez. Intuo que subsistir a este fogo abrasador é um mistério que não posso penetrar, mas não há espaço para nada mais que estar e agradecer estar ante o mistério que compreende tudo, onde minha origem e meu destino são uma parte muito pequena, e só se mantém por amor, pois nada sou. Ele é Deus, “o meu Deus”.

Não resta ação a não ser o amor e a união. “A aurora” manifesta o que a noite escondia. “Tudo foi feito por Ele, e, sem Ele, nada seria de tudo o que foi feito” (Jo 1, 3). Cala toda voz, as discussões e as guerras, e as bajulações. Toda vaidade silencia ante o Senhor Onipotente. E tudo é pura aurora e, nos seres, puro desejo e busca.

Onde calam as paixões, o amor pode falar: “ansioso vos busco”. Esta busca não tem desencontros, não é estilhaço e diversidade, mas unidade infinita e bela, finalidade de todos os desejos bons, capaz de saciar infinitamente o que todos os sentidos anseiam e, ainda assim, não cessam de desejar sempre mais. Paz e silêncio em toda da terra!

“És grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvado; grande é teu poder, e incomensurável tua sabedoria. E o homem, pequena parte de tua criação quer louvar-te, e precisamente o homem que, revestido de sua mortalidade, traz em si o testemunho do pecado e a prova de que resistes aos soberbos. Todavia, o homem, partícula de tua criação, deseja louvar-te.

Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso. Concede, Senhor, que eu bem saiba se é mais importante invocar-te e louvar-te, ou se devo antes conhecer-te, para depois te invocar. Mas alguém te invocará antes de te conhecer? Porque, te ignorando, facilmente estará em perigo de invocar outrem. Porque, porventura, deves antes ser invocado para depois ser conhecido? Mas como invocarão aquele em que não crêem? Ou como haverão de crer que alguém lhos pregue?

Com certeza, louvarão ao Senhor os que o buscam, porque os que o buscam o encontram e os que o encontram hão de louvá-lo.

Que eu, Senhor, te procure invocando-te, e te invoque crendo em ti, pois me pregaram teu nome. invoca-te, Senhor, a fé que tu me deste, a fé que me inspiraste pela humanidade de teu Filho e o ministério de teu pregador”. (Santo Agostinho, Confissões I,1)