sábado, 24 de junho de 2017

PARTILHA SACERDOTAL - 2017




Caro Dom Edney, nosso Bispo. Caros irmãos sacerdotes.

Há dois anos, no Seminário Diocesano realizamos um Simpósio que, dentre os autores escolhidos, tinha o poeta brasileiro Manoel de Barros. Aproprio-me de um de seus poemas para iniciar esta partilha.

TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO ÍNFIMO
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

(Manuel de Barros)

Usei desta poesia para pedir que tenham paciência comigo.

Pois, tenho diante de mim meus formadores, professores, diretores espirituais, mestres, vigários, bispo... e eu com minhas profundidades de inexperiência, mas com grande vontade de aprender. Eu quero aprender dos senhores, meus irmãos.

Entendo que querer aprender e reconhecer minha “imbecilidade” é muito sacerdotal. Em teologia chamam isso de discipulado e Aparecida colocou esta palavra em evidência para todos os cristãos: discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida! Está lançado o desafio do “não saber para poder aprender!”.

Ouvi uma vez de um irmão que está aqui: “Não se levante para ensinar, aquele que não se sentou para aprender”.
Por obediência, então. Venho aqui só partilhar.

Gosto muito de um dos trechos do livro do profeta Isaías, que compõe o Terceiro canto do Servidor.

“Toda manhã ele me desperta meus ouvidos.
Para que, como bom discípulo eu preste atenção.
O Senhor Deus abriu-me os ouvidos, e eu não fiquei revoltado, para trás não andei.”
(Is 50, 4-5)

Este é o misterioso “Servo sofredor” do livro do profeta Isaías. Vejo aqui que discipulado e serviço são, de fato, conceitos que tem muito a ver um com o outro.

No deserto dos primeiros “pais da espiritualidade monástica”, o discípulo era aquele que se colocava a serviço de um ancião. Ao mesmo tempo que servia, aprendia. E chorava quando não tinha mais um pai espiritual a quem recorrer.

Para nós, sacerdotes, aprender também é um serviço. Por isso custa trabalho, dedicação, alguns sofrimentos e pouca recompensa imediata, e é um caminho que só é possível fazer consumindo enormes quantidades de “esperança”. Este é um combustível imprescindível para o discípulo.

O Papa Francisco cita um trecho cheio de esperança do livro das Lamentações na Evangelii Gaudium:

“Gravei tudo isso em minha mente, é está minha esperança.
Há bondade no Senhor, sem fim, misericórdia que não acaba!
Hoje e sempre está se renovando sua grande fidelidade.
Herança minha é o Senhor – eu digo – por isso, nele espero.
Imensa é a bondade do Senhor, com quem o espera e procura.
Importante é aguardar em silêncio o socorro do Senhor!” (Lm 3, 21-26)

Imagino que todos aqui tenham tido, ou estejam tendo, as “inexperiências” que partilharei agora. Peço a Deus que seja de alguma utilidade a patilha.

Quantas vezes quebrei a cara! Precisei aprender tentando e sem saber como fazer ou por onde ir no aqui e agora de ser padre.

Já não tinha os conselheiros sempre à mão do tempo do Seminário e todos cobravam simplesmente de mim a sabedoria e ciência de um sacerdote experiente. Descobri, por isso, minha grande capacidade de errar tentando acertar! Sem contar os pecados...

Mas todas essas “inexperiências” continuam me ajudando sempre que penso sobre elas diante de Deus, diante do meu confessor (e aqui tenho tantos confessores para me ouvirem hoje).
Mas nenhuma delas me ajuda quando as penso, sozinho e sem Deus, diante da cobrança dos homens ou das maluquices autoritárias da minha autossuficiência.

Enquanto saber das coisas, ter muita sabedoria, me lembra o que eu espero no céu o “não saber”, me remete não ao inferno (não é pra tanto!), Mas ao deserto.

Eu tenho uma grande admiração pelo deserto, tanto o deserto bíblico, quanto o da tradição espiritual da nossa Igreja. E Dom Edney e meus amigos mais próximo sabem disso.

O Papa Francisco fala também sobre isso na Evangelii Gaudium, quando diz assim:

“Mas «é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de crer, a sua importância vital para nós.
No deserto, é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida;
Em todo o caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos outros.
Às vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz, mas foi precisamente na Cruz que o Senhor, trespassado, se nos entregou como fonte de água viva.
Não deixemos que nos roubem a esperança! ”. (Cfr. n. 86)

Animado, portanto, vou com coragem por onde não sei, para chegar ao que não conheço, realmente não conheço! Mas desejo do fundo do meu coração: fazer a vontade de Deus, onde espero encontrar minha verdadeira alegria de existir e ser padre.

1.     Primeira coisa que não sei: como manter a unidade fraterna?


Quando, há seis anos, recebi de Deus, pelo Bispo, o sacramento da Ordem fui inserido num presbitério. Fico feliz quando penso que ganhei muitos irmãos ao receber também a graça de ser sacerdote.

No tempo que sou padre, meus irmãos são minha grande alegria. Graças a Deus, até por causa das missões que até hoje tenho desempenhado, passei muitos poucos dias sem ver outro padre na minha frente. Primeiro no Gabinete e na Paróquia, e agora no Seminário. E, com muita alegria tenho que dizer que isso é um bálsamo para mim.

Os padres da nossa Diocese são alegres, positivos. Mesmo quando estamos pesarosos por algum problema, somos fraternos. Infelizmente não conheço intimamente a todos, nem tenho afinidade com todos, também não sei se isso é possível para mim, mas sempre vejo um padre como alguém que me traz alegria.

Agora, entre gostar de todos e ser “irmão” de todos, me parece que há um grande abismo.

A começar pelo modo como falamos e ouvimos falar uns dos outros.

O Papa Francisco fala sempre desse assunto, provavelmente porque deve ser algo mais cotidiano do que somos capazes de nos dar conta no nosso dia-a-dia.

Querer bem implica cobrir com o manto da caridade as faltas do irmão e procurar elogiar as virtudes que ele tem.

Uma vez um leigo me ensinou em uma confissão que só quem ama de verdade é capaz de chorar com nossas dores, sem demagogia e segundas intenções, e também é capaz de se alegrar com nossas alegrias, sem inveja ou dissimulação. Esta é uma escola difícil. Já passei da idade de achar que isso é algo natural. Percebo que isso é algo que se aprende.

Seremos mais fraternos quando formos assim! Disso eu sei.

2.     Um segundo “não saber” que tem a ver com o primeiro: Como escapar do intimismo espiritual da nossa cultura?


Nos encontros de formadores este é um assunto que sempre sai. Vivemos uma cultura e uma espiritualidade muito intimista. Um padre perguntou sobre isso ao Papa Francisco, em 2014. Vou ler uns trechos do que ele respondeu:

Ouve-se dizer que este é um tempo no qual a religiosidade diminuiu, mas não acredito muito. Porque há estas correntes, estas escolas de religiosidade intimistas, como os gnósticos, que fazem uma pastoral semelhante a uma oração pré-cristã, uma oração pré-bíblica, uma oração gnóstica, e o gnosticismo entrou na Igreja com estes grupos de piedade intimista: chamo a isto intimismo. O intimismo não faz bem.
Há religiosidade, sim, mas uma religiosidade pagã, ou até herética; não devemos ter medo de pronunciar esta palavra, porque o gnosticismo é uma heresia, foi a primeira heresia da Igreja. (Cfr. 26/07/2014)

E acho que estamos em pleno tempo dos gnosticismos, muito sentimento, muitas pessoas “divinizadas” ou “canonizadas” antes da hora. É verdade! Parece que nossos irmãos leigos gostam mais das piadas do que da verdade. Estão mais preocupados com a aparência do que com a essência. Preferem o bem-estar à incomoda missão de nadar contra a corrente e fazer o que é certo, cumprir o seu dever!

Mas eu também estou nesta cultura e tudo isso me afeta. Recebo todos os anos jovens no Seminário que são cada vez mais reféns disso, muito mais do que eu, eu percebo. Mas eu também estou neste barco.

Como escapar do intimismo espiritual da nossa cultura?

Já ouvi muitas teorias, mas na prática estamos todos no mesmo barco. Talvez algumas ideias, ou pior, ideologias, nos dividam, mas precisamos lutar contra estes inimigos “anti-cristos” de nossa cultura: a superstição, a superficialidade, a idolatria da autorrealização e do bem-estar, e a fuga dos problemas concretos do outro.

3.     Uma coisa puxa a outra e uma terceira perplexidade deste vosso irmão mais novo é: como ser pai espiritual?


Meu sonho sempre foi ser pai. Tenho uma ótima relação com meu pai e talvez seja por isso. Recebi muitos puxões de orelha quando criança, mas sempre admirei meu pai: suas muitas virtudes são minhas sempre atuais motivações. Percebo que meu pai é fecundíssimo tanto por ter me dado a vida, quanto por ainda fazer germinar em mim muitas sementes de vida. Sem essa boa experiência, facilmente eu seria esmagado pelos percalços da vida.

A partir do meu pai, conheci a Deus como Pai. Ouvindo tanta gente nos dias de hoje sinto-me verdadeiramente privilegiado por ter uma boa figura do pai da terra, para chegar a compreender e conhecer melhor o Pai do Céu.

Mas agora é minha vez! Eu preciso ser pai, fecundíssimo, cheio de vida para dar vida e guiar a vida de outros. Mas isso é um mistério muito grande para mim. É pela força do Espírito Santo, assim eu o aprendi, assim quero crer e, confesso, assim o experimento cada dia.

Mas sei também todo pai, biológico e espiritual, percebe que o filho tem necessidades que o superam. Basta conversar um momento com as famílias cristãs e nós percebemos isso. Conosco não pode ser diferente, se realmente assumimos as ovelhas como um serviço e não por interesse próprio.

Numa de suas conversas com os párocos da Diocese de Caserna, na Itália, o Papa Francisco falou sobre isso usando a palavra “criatividade” como sinônimo de fecundidade e relacionando-a com o poder de Deus Criador. Mais uma vez copio alguns fragmentos:

“Antes de tudo — e esta é a condição, se quisermos ser criativos no Espírito, ou seja, no Espírito do Senhor Jesus — não há outro caminho, a não ser a oração. Um Bispo que não reza, um sacerdote que não reza fechou a porta, fechou o caminho da criatividade.
Não só a oração do Ofício divino, mas a liturgia da Missa, tranquila, bem feita com devoção, a oração pessoal com o Senhor.
É o Senhor que diz: «Vai aqui, vai ali, faz isto...», suscita-te aquela criatividade que tantos Santos pagaram cara.
Muitas vezes a criatividade leva-te à cruz. Mas quando provém da oração, dá fruto.
A criatividade que vem da oração tem uma dimensão antropológica de transcendência, porque mediante a oração abres-te à transcendência, a Deus. Mas há também a outra transcendência: abrir-se aos outros, ao próximo. Não se deve ser uma Igreja fechada em si mesma, que contempla o próprio umbigo, uma Igreja auto-referencial, que olha para si mesma e não é capaz de transcender. É importante a transcendência dupla: rumo a Deus e rumo ao próximo.
Como encontro os outros? De longe ou de perto? É necessário encontrá-los de perto, a proximidade. Criatividade, transcendência e proximidade”. (Cfr. 26/07/2014)

A pergunta ainda é: como ser pai espiritual? E acho que o Santo Padre me iluminou com sua habitual simplicidade e profundidade: Criatividade, transcendência e proximidade. E ainda contou uma história:

Há dois anos, um sacerdote que foi para a Argentina como missionário — era da diocese de Buenos Aires e foi para uma diocese do Sul, numa zona onda fazia anos que não havia um sacerdote, e tinham chegado os evangélicos — contou-me que encontrou uma mulher que tinha sido a professora do povoado e depois a diretora da escola do lugar. Esta senhora fê-lo acomodar e começou a insultá-lo, não com palavrões, mas com ímpeto: «Vós abandonastes-nos, deixastes-nos sozinhos, e eu que preciso da Palavra de Deus tive que ir ao culto protestante e tornei-me protestante». Este sacerdote jovem, que é uma pessoa tranquila que reza, quando a mulher terminou o queixume, disse: «Senhora, só uma palavra: perdão. Perdoa-nos, perdoa-nos. Abandonamos o rebanho». E o tom daquela mulher mudou. Contudo, permaneceu protestante e o sacerdote não entrou no tema de qual era a verdadeira religião: naquele momento ele não o podia fazer. No fim, a senhora começou a sorrir e disse: «Padre, deseja um café?» — «Sim, tomemos um café». E quando o sacerdote estava para sair, disse: «Espere, padre, venha», e conduziu-o até ao quarto, abriu o armário e ali estava a imagem de Nossa Senhora: «deve saber que nunca a abandonei. Está escondida por causa do pastor, mas tenho-a em casa!». Trata-se de uma história que ensina como a proximidade e a mansidão fizeram com que esta mulher se reconciliasse com a Igreja, porque se sentia abandonada pela Igreja. (Cfr. 26/07/2014)

Percebo que, assim como acontece com muitos pais, eu posso perder meus “filhos” por querer controla-los demais, ou por soltá-los demais. Por isso preciso aprender a ser padre, e partilho isso com os senhores.
Tenho ainda uma última “inexperiência” para partilhar.

4.     Qual é o centro da espiritualidade de um padre diocesano?


A cartilha do Seminário sempre me ensinou que é a espiritualidade do Bom Pastor. (Que não tenha nenhum seminarista aqui por causa do que eu vou falar...) Mas a imagem que eu sempre fiz do bom pastor não encaixa muito com o que eu encontro hoje. Na minha imaginação, este "pastor" é muito solitário, muito free lancer, muito "in-dependente" (ou autossuficiente?).

O Papa Francisco, mais uma vez, me iluminou sobre esta questão quando disse que “o centro da espiritualidade do padre Diocesano está na diocesanidade”. Parece aula de metafísica, com a velha história da cadeiridade da cadeira... a diocesanidade dos padres diocesanos. Mas a explicação é mais simples: proximidade com o Bispo e proximidade com os irmãos de presbitério.

Cito o Papa: Diocesanidade significa uma relação com o Bispo que se deve concretizar e fazer crescer continuamente. Na maioria dos casos não é um problema catastrófico, mas uma realidade normal. Em segundo lugar a diocesanidade implica uma relação com os outros sacerdotes, com todo o presbitério. Não há espiritualidade do sacerdote diocesano sem estes dois relacionamentos: com o Bispo e com o presbitério.
Tudo consiste nisto: é simples, mas ao mesmo tempo não é fácil. Não é fácil pôr-se de acordo com o Bispo, nem sempre é fácil, porque as ideias de um e de outro são diferentes, mas pode-se discutir... e discuta-se! (...) Quantas vezes um filho discute com o seu pai e no fim permanecem sempre pai e filho. Contudo, quando nestas duas relações, quer com o Bispo quer com o presbitério, há diplomacia, não há o Espírito do Senhor, porque falta o espírito de liberdade. É preciso ter a coragem de dizer «Eu não penso assim, penso diversamente», e também a humildade de aceitar uma correção. É muito importante. E qual é o maior inimigo destas duas relações? Os mexericos.
Mas, tu és um homem, por conseguinte se tens algo contra o Bispo vai ter com ele e esclarece. Mas depois haverá consequências negativas. Carregarás a cruz, mas sê homem! Se és um homem maduro e vês algo no teu irmão sacerdote que não te agrada ou que consideras errado, diz-lho diretamente, ou então se vires que ele não tolera ser corrigido, vai dizê-lo ao Bispo ou ao amigo mais íntimo daquele sacerdote, para que possa ajudá-lo a corrigir-se. Mas não o digas aos outros: porque isto significa sujar-se um ao outro. E o diabo fica feliz com aquele «banquete», porque assim ataca precisamente o centro da espiritualidade do clero diocesano. Na minha opinião os mexericos são muito danosos. (Cfr. 26/07/2014)

Termino aqui a partilha, emendando com a primeira questão que foi: como manter a unidade fraterna? 

E recordando:

- Como não ser presa da espiritualidade intimista da nossa cultura?
- Como ser um pai espiritual?
- Qual é o centro da espiritualidade do padre diocesano?

É importante ainda falar que se queremos “nos cuidar” é porque a finalidade de nossa vida bem cuidada é sempre pastoral, cuidar do povo de Deus e por isso a imagem do Bom Pastor é muito importante. Eu continuo usando esta imagem no Seminário. Mas não tenho o direito de falar aqui sobre “como cuidar das ovelhas”! Entrar nas tão queridas discussões pastorais ou querer falar sobre como fazer pastoral aqui na frente dos senhores já seria muita pretensão da minha parte. Prefiro observar os senhores e aprender ainda mais. Pois aprender, para o sacerdote, é um importante serviço de caridade.

Obrigado a todos!


(22/06/2017, 

eu, sacerdote há quase 6 anos)