PARTILHA SACERDOTAL - 2017
Caro Dom Edney, nosso Bispo.
Caros irmãos sacerdotes.
Há dois anos, no Seminário
Diocesano realizamos um Simpósio que, dentre os autores escolhidos, tinha o
poeta brasileiro Manoel de Barros. Aproprio-me de um de seus poemas para
iniciar esta partilha.
TRATADO GERAL DAS GRANDEZAS DO
ÍNFIMO
A poesia está guardada nas
palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.
(Manuel
de Barros)
Usei desta poesia para
pedir que tenham paciência comigo.
Pois, tenho diante de mim
meus formadores, professores, diretores espirituais, mestres, vigários,
bispo... e eu com minhas profundidades de inexperiência, mas com grande vontade
de aprender. Eu quero aprender dos senhores, meus irmãos.
Entendo que querer
aprender e reconhecer minha “imbecilidade” é muito sacerdotal. Em teologia
chamam isso de discipulado e Aparecida colocou esta palavra em evidência para
todos os cristãos: discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele
nossos povos tenham vida! Está lançado o desafio do “não saber para poder
aprender!”.
Ouvi uma vez de um irmão
que está aqui: “Não se levante para ensinar, aquele que não se sentou para
aprender”.
Por obediência, então.
Venho aqui só partilhar.
Gosto muito de um dos trechos
do livro do profeta Isaías, que compõe o Terceiro canto do Servidor.
“Toda
manhã ele me desperta meus ouvidos.
Para
que, como bom discípulo eu preste atenção.
O
Senhor Deus abriu-me os ouvidos, e eu não fiquei revoltado, para trás não
andei.”
(Is 50, 4-5)
Este é o misterioso
“Servo sofredor” do livro do profeta Isaías. Vejo aqui que discipulado e serviço
são, de fato, conceitos que tem muito a ver um com o outro.
No deserto dos primeiros
“pais da espiritualidade monástica”, o discípulo era aquele que se colocava a
serviço de um ancião. Ao mesmo tempo que servia, aprendia. E chorava quando não
tinha mais um pai espiritual a quem recorrer.
Para nós, sacerdotes,
aprender também é um serviço. Por isso custa trabalho, dedicação, alguns
sofrimentos e pouca recompensa imediata, e é um caminho que só é possível fazer
consumindo enormes quantidades de “esperança”. Este é um combustível
imprescindível para o discípulo.
O Papa Francisco cita um
trecho cheio de esperança do livro das Lamentações na Evangelii Gaudium:
“Gravei
tudo isso em minha mente, é está minha esperança.
Há
bondade no Senhor, sem fim, misericórdia que não acaba!
Hoje
e sempre está se renovando sua grande fidelidade.
Herança
minha é o Senhor – eu digo – por isso, nele espero.
Imensa
é a bondade do Senhor, com quem o espera e procura.
Importante
é aguardar em silêncio o socorro do Senhor!” (Lm 3, 21-26)
Imagino que todos aqui
tenham tido, ou estejam tendo, as “inexperiências” que partilharei agora. Peço
a Deus que seja de alguma utilidade a patilha.
Quantas vezes quebrei a
cara! Precisei aprender tentando e sem saber como fazer ou por onde ir no aqui
e agora de ser padre.
Já não tinha os
conselheiros sempre à mão do tempo do Seminário e todos cobravam simplesmente de mim a sabedoria e ciência de um
sacerdote experiente. Descobri, por isso, minha grande capacidade de errar
tentando acertar! Sem contar os pecados...
Mas todas essas “inexperiências”
continuam me ajudando sempre que penso sobre elas diante de Deus, diante do meu
confessor (e aqui tenho tantos
confessores para me ouvirem hoje).
Mas nenhuma delas me
ajuda quando as penso, sozinho e sem Deus, diante da cobrança dos homens ou das
maluquices autoritárias da minha autossuficiência.
Enquanto saber das
coisas, ter muita sabedoria, me lembra o que eu espero no céu o “não saber”, me
remete não ao inferno (não é pra tanto!), Mas ao deserto.
Eu tenho uma grande
admiração pelo deserto, tanto o deserto bíblico, quanto o da tradição
espiritual da nossa Igreja. E Dom Edney e meus amigos mais próximo sabem disso.
O Papa Francisco fala
também sobre isso na Evangelii Gaudium, quando diz assim:
“Mas
«é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos
redescobrir a alegria de crer, a sua importância vital para nós.
No
deserto, é possível redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida;
Em
todo o caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de beber aos
outros.
Às
vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz, mas foi precisamente na Cruz
que o Senhor, trespassado, se nos entregou como fonte de água viva.
Não
deixemos que nos roubem a esperança! ”. (Cfr. n. 86)
Animado, portanto, vou
com coragem por onde não sei, para chegar ao que não conheço, realmente não
conheço! Mas desejo do fundo do meu coração: fazer a vontade de Deus, onde
espero encontrar minha verdadeira alegria de existir e ser padre.
1. Primeira coisa que não sei: como manter a unidade fraterna?
Quando, há seis anos,
recebi de Deus, pelo Bispo, o sacramento da Ordem fui inserido num presbitério.
Fico feliz quando penso que ganhei muitos irmãos ao receber também a graça de
ser sacerdote.
No tempo que sou padre,
meus irmãos são minha grande alegria. Graças a Deus, até por causa das missões
que até hoje tenho desempenhado, passei muitos poucos dias sem ver outro padre
na minha frente. Primeiro no Gabinete e na Paróquia, e agora no Seminário. E,
com muita alegria tenho que dizer que isso é um bálsamo para mim.
Os padres da nossa
Diocese são alegres, positivos. Mesmo quando estamos pesarosos por algum
problema, somos fraternos. Infelizmente não conheço intimamente a todos, nem
tenho afinidade com todos, também não sei se isso é possível para mim, mas
sempre vejo um padre como alguém que me traz alegria.
Agora, entre gostar de
todos e ser “irmão” de todos, me parece que há um grande abismo.
A começar pelo modo como
falamos e ouvimos falar uns dos outros.
O Papa Francisco fala
sempre desse assunto, provavelmente porque deve ser algo mais cotidiano do que
somos capazes de nos dar conta no nosso dia-a-dia.
Querer bem implica cobrir
com o manto da caridade as faltas do irmão e procurar elogiar as virtudes que
ele tem.
Uma vez um leigo me
ensinou em uma confissão que só quem ama de verdade é capaz de chorar com
nossas dores, sem demagogia e segundas intenções, e também é capaz de se
alegrar com nossas alegrias, sem inveja ou dissimulação. Esta é uma escola
difícil. Já passei da idade de achar que isso é algo natural. Percebo que isso
é algo que se aprende.
Seremos mais fraternos
quando formos assim! Disso eu sei.
2. Um segundo “não saber” que tem a ver com o primeiro: Como escapar do intimismo espiritual da nossa cultura?
Nos encontros de
formadores este é um assunto que sempre sai. Vivemos uma cultura e uma espiritualidade
muito intimista. Um padre perguntou sobre isso ao Papa Francisco, em 2014. Vou
ler uns trechos do que ele respondeu:
Ouve-se
dizer que este é um tempo no qual a religiosidade diminuiu, mas não acredito
muito. Porque há estas correntes, estas escolas de religiosidade intimistas,
como os gnósticos, que fazem uma pastoral semelhante a uma oração pré-cristã,
uma oração pré-bíblica, uma oração gnóstica, e o gnosticismo entrou na Igreja
com estes grupos de piedade intimista: chamo a isto intimismo. O intimismo não
faz bem.
Há
religiosidade, sim, mas uma religiosidade pagã, ou até herética; não devemos
ter medo de pronunciar esta palavra, porque o gnosticismo é uma heresia, foi a
primeira heresia da Igreja. (Cfr. 26/07/2014)
E acho que estamos em
pleno tempo dos gnosticismos, muito sentimento, muitas pessoas “divinizadas” ou
“canonizadas” antes da hora. É verdade! Parece que nossos irmãos leigos gostam
mais das piadas do que da verdade. Estão mais preocupados com a aparência do
que com a essência. Preferem o bem-estar à incomoda missão de nadar contra a
corrente e fazer o que é certo, cumprir o seu dever!
Mas eu também estou nesta
cultura e tudo isso me afeta. Recebo todos os anos jovens no Seminário que são
cada vez mais reféns disso, muito mais do que eu, eu percebo. Mas eu também
estou neste barco.
Como escapar do intimismo
espiritual da nossa cultura?
Já ouvi muitas teorias,
mas na prática estamos todos no mesmo barco. Talvez algumas ideias, ou pior,
ideologias, nos dividam, mas precisamos lutar contra estes inimigos
“anti-cristos” de nossa cultura: a superstição, a superficialidade, a idolatria
da autorrealização e do bem-estar, e a fuga dos problemas concretos do outro.
3. Uma coisa puxa a outra e uma terceira perplexidade deste vosso irmão mais novo é: como ser pai espiritual?
Meu sonho sempre foi ser
pai. Tenho uma ótima relação com meu pai e talvez seja por isso. Recebi muitos
puxões de orelha quando criança, mas sempre admirei meu pai: suas muitas
virtudes são minhas sempre atuais motivações. Percebo que meu pai é
fecundíssimo tanto por ter me dado a vida, quanto por ainda fazer germinar em
mim muitas sementes de vida. Sem essa boa experiência, facilmente eu seria
esmagado pelos percalços da vida.
A partir do meu pai,
conheci a Deus como Pai. Ouvindo tanta gente nos dias de hoje sinto-me
verdadeiramente privilegiado por ter uma boa figura do pai da terra, para chegar
a compreender e conhecer melhor o Pai do Céu.
Mas agora é minha vez! Eu
preciso ser pai, fecundíssimo, cheio de vida para dar vida e guiar a vida de
outros. Mas isso é um mistério muito grande para mim. É pela força do Espírito
Santo, assim eu o aprendi, assim quero crer e, confesso, assim o experimento
cada dia.
Mas sei também todo pai,
biológico e espiritual, percebe que o filho tem necessidades que o superam.
Basta conversar um momento com as famílias cristãs e nós percebemos isso.
Conosco não pode ser diferente, se realmente assumimos as ovelhas como um
serviço e não por interesse próprio.
Numa de suas conversas
com os párocos da Diocese de Caserna, na Itália, o Papa Francisco falou sobre
isso usando a palavra “criatividade” como sinônimo de fecundidade e
relacionando-a com o poder de Deus Criador. Mais uma vez copio alguns
fragmentos:
“Antes
de tudo — e esta é a condição, se quisermos ser
criativos no Espírito, ou seja, no Espírito do Senhor Jesus — não há
outro caminho, a não ser a oração. Um Bispo que não reza, um sacerdote que não
reza fechou a porta, fechou o caminho da criatividade.
Não
só a oração do Ofício divino, mas a liturgia da Missa, tranquila, bem feita com
devoção, a oração pessoal com o Senhor.
É
o Senhor que diz: «Vai aqui, vai ali, faz isto...», suscita-te aquela
criatividade que tantos Santos pagaram cara.
Muitas
vezes a criatividade leva-te à cruz. Mas quando provém da oração, dá fruto.
A
criatividade que vem da oração tem uma dimensão antropológica de
transcendência, porque mediante a oração abres-te à transcendência, a Deus. Mas
há também a outra transcendência: abrir-se aos outros, ao próximo. Não se deve
ser uma Igreja fechada em si mesma, que contempla o próprio umbigo, uma Igreja
auto-referencial, que olha para si mesma e não é capaz de transcender. É
importante a transcendência dupla: rumo a Deus e rumo ao próximo.
Como
encontro os outros? De longe ou de perto? É necessário encontrá-los de perto, a
proximidade. Criatividade, transcendência e proximidade”. (Cfr. 26/07/2014)
A pergunta ainda é: como
ser pai espiritual? E acho que o Santo Padre me iluminou com sua habitual
simplicidade e profundidade: Criatividade, transcendência e proximidade. E
ainda contou uma história:
Há
dois anos, um sacerdote que foi para a Argentina como missionário — era da
diocese de Buenos Aires e foi para uma diocese do Sul, numa zona onda fazia
anos que não havia um sacerdote, e tinham chegado os evangélicos — contou-me
que encontrou uma mulher que tinha sido a professora do povoado e depois a
diretora da escola do lugar. Esta senhora fê-lo acomodar e começou a
insultá-lo, não com palavrões, mas com ímpeto: «Vós abandonastes-nos,
deixastes-nos sozinhos, e eu que preciso da Palavra de Deus tive que ir ao
culto protestante e tornei-me protestante». Este sacerdote jovem, que é uma
pessoa tranquila que reza, quando a mulher terminou o queixume, disse:
«Senhora, só uma palavra: perdão. Perdoa-nos, perdoa-nos. Abandonamos o
rebanho». E o tom daquela mulher mudou. Contudo, permaneceu protestante e o
sacerdote não entrou no tema de qual era a verdadeira religião: naquele momento
ele não o podia fazer. No fim, a senhora começou a sorrir e disse: «Padre,
deseja um café?» — «Sim, tomemos um café». E quando o sacerdote estava para
sair, disse: «Espere, padre, venha», e conduziu-o até ao quarto, abriu o
armário e ali estava a imagem de Nossa Senhora: «deve saber que nunca a abandonei.
Está escondida por causa do pastor, mas tenho-a em casa!». Trata-se de uma
história que ensina como a proximidade e a mansidão fizeram com que esta mulher
se reconciliasse com a Igreja, porque se sentia abandonada pela Igreja. (Cfr. 26/07/2014)
Percebo que, assim como
acontece com muitos pais, eu posso perder meus “filhos” por querer controla-los
demais, ou por soltá-los demais. Por isso preciso aprender a ser padre, e
partilho isso com os senhores.
Tenho ainda uma última
“inexperiência” para partilhar.
4. Qual é o centro da espiritualidade de um padre diocesano?
A cartilha do Seminário
sempre me ensinou que é a espiritualidade do Bom Pastor. (Que não tenha nenhum
seminarista aqui por causa do que eu vou falar...) Mas a imagem que eu sempre
fiz do bom pastor não encaixa muito com o que eu encontro hoje. Na minha imaginação, este "pastor" é muito solitário, muito free lancer, muito "in-dependente" (ou autossuficiente?).
O Papa Francisco, mais
uma vez, me iluminou sobre esta questão quando disse que “o centro da espiritualidade do padre Diocesano está na diocesanidade”.
Parece aula de metafísica, com a velha história da cadeiridade da cadeira... a
diocesanidade dos padres diocesanos. Mas a explicação é mais simples:
proximidade com o Bispo e proximidade com os irmãos de presbitério.
Cito o Papa: Diocesanidade significa uma relação com o Bispo
que se deve concretizar e fazer crescer continuamente. Na maioria dos casos não
é um problema catastrófico, mas uma realidade normal. Em segundo lugar a
diocesanidade implica uma relação com os outros sacerdotes, com todo o
presbitério. Não há espiritualidade do sacerdote diocesano sem estes dois
relacionamentos: com o Bispo e com o presbitério.
Tudo
consiste nisto: é simples, mas ao mesmo tempo não é fácil. Não é fácil pôr-se
de acordo com o Bispo, nem sempre é fácil, porque as ideias de um e de outro
são diferentes, mas pode-se discutir... e discuta-se! (...) Quantas vezes um
filho discute com o seu pai e no fim permanecem sempre pai e filho. Contudo,
quando nestas duas relações, quer com o Bispo quer com o presbitério, há
diplomacia, não há o Espírito do Senhor, porque falta o espírito de liberdade.
É preciso ter a coragem de dizer «Eu não penso assim, penso diversamente», e
também a humildade de aceitar uma correção. É muito importante. E qual é o
maior inimigo destas duas relações? Os mexericos.
Mas,
tu és um homem, por conseguinte se tens algo contra o Bispo vai ter com ele e
esclarece. Mas depois haverá consequências negativas. Carregarás a cruz, mas sê
homem! Se és um homem maduro e vês algo no teu irmão sacerdote que não te
agrada ou que consideras errado, diz-lho diretamente, ou então se vires que ele
não tolera ser corrigido, vai dizê-lo ao Bispo ou ao amigo mais íntimo daquele
sacerdote, para que possa ajudá-lo a corrigir-se. Mas não o digas aos outros:
porque isto significa sujar-se um ao outro. E o diabo fica feliz com aquele
«banquete», porque assim ataca precisamente o centro da espiritualidade do
clero diocesano. Na minha opinião os mexericos são muito danosos. (Cfr. 26/07/2014)
Termino aqui a partilha,
emendando com a primeira questão que foi: como manter a unidade fraterna?
E
recordando:
- Como não ser presa da
espiritualidade intimista da nossa cultura?
- Como ser um pai
espiritual?
- Qual é o centro da
espiritualidade do padre diocesano?
É importante ainda falar
que se queremos “nos cuidar” é porque a finalidade de nossa vida bem cuidada é
sempre pastoral, cuidar do povo de Deus e por isso a imagem do Bom Pastor é
muito importante. Eu continuo usando esta imagem no Seminário. Mas não tenho o
direito de falar aqui sobre “como cuidar das ovelhas”! Entrar nas tão queridas
discussões pastorais ou querer falar sobre como fazer pastoral aqui na frente
dos senhores já seria muita pretensão da minha parte. Prefiro observar os
senhores e aprender ainda mais. Pois aprender, para o sacerdote, é um
importante serviço de caridade.
Obrigado a todos!
(22/06/2017,
eu, sacerdote há quase 6 anos)
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